PATHÉ - Nº 0
Publicado em 25 de setembro de 2022




Reconhecida pela atuação na área da produção cinematográfica, a Pathé começou como uma loja dedicada à venda de fonógrafos na cidade de Paris. Quatro anos mais tarde, em 1898, os irmãos Charles e Émile Pathé fundaram uma fábrica e começaram a produzir seus próprios fonógrafos, adotando a icônica figura de um galo como marca da empresa.
Esse pequeno fonógrafo conhecido como modelo Nº 0 foi lançado em meados dos anos 1903. De acordo com os documentos disponíveis no Graphonogram, o modelo aparece em um catálogo da época como o menor e mais barato fonógrafo fabricado pela Pathé, custando inicialmente 22,50 francos. De maneira opicional era possível obter uma corneta maior por um custo adicional de 2,50 francos.
Este que foi restauro por mim foi trazido recentemente da França, estava sendo leiloado para retirada de peças ou para uma completa reforma. O mecanismo parecia completo, mas faltava a corneta e o suporte, o reprodutor teria que ser reconstruído e o gabinete de madeira precisava de um novo acabamento. Ou seja, a restauração demandaria um longo trabalho, mas me interessei pelo desafio de dar vida nova ao pequeno fonógrafo.
O grande desafio consistia na recuperação do gabinete de madeira, que estava em condições precárias. A tampa estava bastante empenada e com as peças descoladas. A base tinha pequenas marcas de cupins e a lâmina que faz o acabamento da parte inferior estava parcialmente decolada e com sinais de mofo. A alça e os fechos estavam bastante enferrujados, possivelmente o fonógrafo ficou um longo tempo exposto à umidade.
Comecei a restauração do gabinete pela tampa, descolando totalmente cada peça. A cola usada nesta época era de base de animal, também conhecida como hide glue. Este tipo de cola é sensível a umidade e calor, o que possibilita uma desmontagem relativamente fácil. Existem várias formas para desmontar peças coladas com este tipo de cola, como a intenção era refazer o acabamento por completo, eu usei o método mais simples que é expor as peças a umidade até amolecer a cola. Encharquei papeis tolhas com água, coloquei em volta das justas e envolvi com filme de PVC para manter a umidade. Deixei as peças assim ao longo de toda noite. No dia seguinte a cola já havia amolecido e consegui facilmente separar as peças.






Feito isso, iniciei o processo de desempeno de cada parte. Utilizei uma técnica que consiste basicamente em umedecer a madeira para hidratar as fibras e depois deixar secar em uma posição que favoreça que elas sequem de forma alinhada. Então deixei as peças submersas em uma bacia com água por algumas horas, depois coloquei em uma superfície plana e, com o auxílio de grampos, forcei as partes tortas em uma posição reta. Mantive as peças assim por alguns dias até a completa secagem. Os grampos podem ser aliviados gradativamente ao longo dos últimos dias.
É preciso certo cuidado com madeiras de espessuras finas como as deste gabinete. Primeiro para não quebrar as peças no momento de fixar com os grampos. Segundo para não deformar as peças aplicando força em excesso nos grampos. Eu cometi este último erro e algumas peças acabaram deformando, de modo que não encaixavam perfeitamente durante a montagem. Então foi necessário repetir todo o processo, colocando as peças novamente na água para voltarem ao formato inicial e depois deixar secar de novo com o auxílio dos grampos. Acabei perdendo bastante tempo neste processo.
Com as peças desempenadas iniciei a colagem do gabinete. Utilizei uma cola semelhante a original para manter as características da época. A Titebond tem uma versão deste tipo de cola, chamada Genuine Hide Glue, que pode ser encontrada a venda na internet e em lojas de produtos para luthiers. Para facilitar a colagem da tampa do gabinete eu recorri aos grampos gaveta, que possuem guias laterais interligadas por uma cinta, isso ajuda a montagem das partes no esquadro. A parte superior da tampa tinha uma rachadura que foi possível também de ser colada sem grandes desafios.
Na base do gabinete, onde o mecanismo é fixado, foi necessário aplicar uma nova folha de madeira para fazer o acabamento na parte debaixo. Com uma certa dificuldade foi possível remover toda a folha velha para aplicação de uma nova. Utilizei um retalho de imbuía que encontrei em uma marcenaria próxima de casa. A tonalidade mais escura da imbuía gerou um efeito bastante semelhante a folha original.
O passo seguinte foi o lixamento de todo o gabinete. Aproveitei o processo para desbastar um pouco mais os encaixes, quinas e extremidades, ajustando e uniformizando o gabinete. Comecei com uma lixa 120 e fui reduzindo gradativamente até finalizar com uma lixa 400. É legal usar um taco durante o lixamento para evitar criar deformidades na madeira.
Depois de um dia inteiro trabalhando no lixamento cuidadoso do gabinete, iniciei o acabamento seguindo o mesmo processo que fiz na Victrola VV-VI. Segui basicamente seis etapas: 1.Tingimento > 2. Selagem > 3. Preenchimento dos poros > 4. Correções > 5. Acabamento > 6. Polimento. Recomendo como material de estudo para este trabalho a vídeo aula sobre polimento francês do canal Gilboys.
Começando pelo tingimento, esta é uma etapa imprescindível para alcançar a tonalidade da madeira o mais próximo possível do acabamento original. Há diversas formas e produtos para realizar o tingimento de madeira. Eu tenho gostado de usar tingidor à base d’água aplicado diretamente na madeira, como a primeira camada de todo o acabamento. No caso deste gabinete, usei um tingidor na cor mogno para puxar o tom levemente para o avermelhado, tal como o gabinete original. Após alguns testes em um pedaço de madeira, cheguei a uma diluição de 1:1, uma parte de água e uma de tingidor.
Após o tingimento, a madeira foi selada com goma laca, que foi o produto que escolhi para fazer o acabamento do gabinete. O interessante da goma laca é que é um material historicamente condizente com a época de fabricação deste fonógrafo. Com o gabinete selado, fiz três aplicações de preenchedor de poro (grain filler) para fechar os veios da madeira. Feito isso, apliquei mais duas a três demãos de goma laca, preparando a superfície para iniciar as devidas correções na superfície da madeira.
Essas correções consistiram basicamente em tampar os pequenos furos de cupins e algumas fendas naturais da madeira. Usei cera de abelha para fazer o preenchimento, colorindo-a com goma laca tingida com anilina. Para chegar na cor correta, testei diversas misturas de cores. A aplicação foi feita com um pincel bem pequeno, do tipo usado em pintura de quadros.





O passo seguinte foi realizar o acabamento, utilizando uma técnica conhecida como polimento francês, que consiste basicamente na aplicação de goma laca com boneca em várias sessões. Realizei aproximadamente seis sessões até chegar ao resultado desejado, ou seja, uma superfície lisa e espelhada.
Desta vez, testei realizar um polimento final com uma massa de polir à base d’água. Fiz um lixamento leve e molhado com uma lixa 2500 antes de aplicar a massa. Notei que este polimento deixou a superfície ainda mais uniforme e com o brilho mais intenso do que a finalização direta do polimento francês. Entretanto, notei também que o processo precisa ser realizado com cautela, uma vez que a abrasividade da massa de polir pode remover mais material do que o desejado. Após o polimento, apliquei um novo decalque para dar o toque final ao gabinete.
Enquanto realizava todo esse processo do acabamento, fui adiantando a revisão do mecanismo durante os intervalos de secagem da goma laca. Realmente o mecanismo estava em boas condições, necessitava apenas de uma boa limpeza e aplicação de uma lubrificação nova. Para evitar usar produtos muito tóxicos para desengraxar as peças, testei um desengraxante chamado H-7. O produto é de fácil aplicação e bem menos agressivo que querosene, por exemplo, mas esperava que fosse um pouco mais eficiente. Notei que as peças ficaram um pouco grudentas mesmo depois da limpeza. Farei novos testes nas próximas restaurações.
Com o gabinete e mecanismo concluídos, prossegui com a reconstrução do reprodutor. Foi necessário fazer uma completa reconstrução, trocando as juntas, diafragma e a agulha de safira.
Um ótimo fornecedor dessas peças é o Pedro Martínez, é possível encomendar os produtos dele através do site PedroFono. Para os marinheiros de primeira viagem, recomendo assistir este vídeo produzido pelo próprio Pedro explicando todo o processo de reconstrução de um reprodutor.
Para concluir o restauro faltava encontrar uma corneta e suporte. Após uma longa busca, encontrei um vendedor francês no Ebay que tinha um suporte a venda. Trocando algumas mensagens com ele, descobri que ele também tinha uma corneta em bom estado de conservação. Graças a uma excelente embalagem feita por ele, as peças chegaram inteiras aqui no Brasil.
Também foi necessário substituir o tubo de borracha que conecta o reprodutor na corneta, uma vez que o original já estava deteriorado. Uma solução fácil seria improvisar uma mangueira no diâmetro correto. Mas acabei encontrando uma réplica desta peça, o que deixou o resultado ainda melhor. Durante estas buscas por peças na internet, encontrei por acaso o mandril Inter, que era uma peça acessória que acompanhava originalmente o fonógrafo e permitia a reprodução de cilindros de diâmetro maior. O madril estava bastante oxidado pelo tempo, mas lixando e polindo ficou como novo.
Depois de mais de 60 horas de trabalho ao longo de dois meses, o pequeno Pathé Nº 0 ganhou vida nova, como se tivesse acabado de sair da fábrica no lá em meados de 1903. Para demonstrar o resultado gravei um vídeo utilizando o adaptador Inter para reproduzir um cilindro Pathé de grande diâmetro. A música é um trecho da ópera Carmen, de Georges Bizet, provavelmente uma gravação realizada nos primeiros anos do século XX.

